Joana Mendes foi assassinada com 27 facadas no rosto pelo ex-companheiro. No sepultamento, o caixão precisou ficar fechado porque a professora estava desfigurada; Roberta (nome fictício) achou que tinha casado com um príncipe, mas pouco tempo depois do nascimento do 1° filho, o marido mudou, viciou-se em cocaína e a espancou numa noite em que estava drogado; Simone (nome fictício) viveu por três anos um relacionamento abusivo com um homem que a humilhava e batia nela constantemente. Num dos espancamentos, a psicóloga, que estava grávida, sofreu um aborto; R.R. foi violentada sexualmente pelo primeiro namorado. Mesmo 20 anos depois daquele estupro, até hoje, se alguém a segura com mais força na hora da relação sexual, ela se desespera. Todas essas são histórias de vítimas que trazem no corpo e na mente os traumas da violência praticada contra a mulher. E o Ministério Público Estadual de Alagoas (MPE/AL) quer chamar atenção para o assunto, despertar a discussão e fazer um alerta para importância da denúncia contra o agressor. A campanha “Agosto Lilás” se estenderá por todo este mês, ocupará plataformas multimídias e mostrará o envolvimento de promotores, procuradores de Justiça e servidores da instituição, e de autoridades, personalidades e artistas alagoanos, todos, engajados com essa causa.
Os dados assustam: 10.284 procedimentos tramitam atualmente na 38ª Promotoria de Justiça da Capital, que tem atribuição para atuar no combate e prevenção à violência doméstica e familiar contra a mulher. Desse total, 5.656 já se tornaram processos penais e os outros 4.628 registros são medidas protetivas concedidas pelo Poder Judiciário, requisição de relatórios e inquéritos policiais sob análise.
E somente no ano de 2016, o Ministério Público registrou 3.699 casos de violência contra a mulher sob a forma da Lei Maria da Penha. Em Maceió, foram 794 casos. Agora em 2017, o número de denúncias já chega a 455.
Os tipos de crimes cometidos também são muitos. Ameaça, lesão corporal, feminicídio e tentativa de feminicídio, estupro, crimes contra honra e a liberdade de expressão e dano são apenas alguns deles. Neste ano, por exemplo, entre as denúncias ofertadas 217 foram por ameaça e 208 por lesão corporal, o que corresponde a 47,69% e 45,71% dos casos que chegaram à 38ª Promotoria de Justiça da Capital. Feminicídio na forma tentada foram cinco denúncias já feitas.
“Esse é o tipo de violência de gênero, onde o homem agride porque sabe que é mais forte que a mulher. Muitas vezes, é para mostrar poder sobre ela. Mas o Ministério Público trabalha incansavelmente para punir esse agressor. Denuncia, pede a sua condenação e mostra para a sociedade que a mulher não está sozinha”, declarou Alfredo Gaspar de Mendonça Neto, procurador-geral de Justiça.
O trabalho do MP contra esse crime
Pela legislação, configura-se violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão, baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. O Ministério Público tem atribuição para atuar em qualquer uma dessas situações e é a 38ª Promotoria de Justiça da Capital, cuja titularidade pertence a promotora de Justiça Maria José Alves, que tem atribuição para trabalhar nessa área.
Segundo ela, os dados envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher ainda são alarmantes aqui em Alagoas e as agressões ocorrem em todas as camadas sociais. “Não há perfil de vítima. A violência contra a mulher está presente em todas as classes sociais, independentemente de nível cultural, econômico-financeiro, raça, credos. A falsa impressão de ser o número de casos mais elevados nas classes menos privilegiadas se dá porque, por óbvio e em função da desigualdade social, a quantidade de pessoas nesse segmento social é muito mais elevado”, explicou a promotora.
Maria José Alves destacou ainda que a maioria das vítimas continua numa relação abusiva com o agressor não mais por dependência econômica, como era comum no passado. “Na realidade atual, elas são bem mais dependentes afetivamente. E isso ocorre porque essas mulheres entendem que aquele comportamento do agressor se dá por amor, por proteção”, acrescentou.
A promotora de Justiça também lembrou que a Lei Maria da Penha oferece maior segurança à vítima a partir do momento que não existe mais a facilidade do agressor se ver livre de uma punição. “Há, sim, vítimas que desejam desistir. Porém, isso não mais ocorre pelo simples fato da mulher desistir da ‘queixa’. Só é possível exercer o direito de retratação ou de renúncia à representação em alguns casos, a exemplo de ameaça, ilícito previsto no artigo 147 do Código Penal”, esclareceu.
“Quando em setembro de 2013 assumimos a 38ª Promotoria de Justiça da Capital, era assustador o número de mulheres que lá chegavam querendo desistir da acusação contra o agressor. Então, diante daquele quadro, resolvemos que somente após a vítima ser ouvida pela equipe multidisciplinar aceitaríamos a designação da audiência para rever o caso. Era tão elevado o número de mulheres querendo se retratar que expressamos nossa angústia e preocupação junto a equipe. E foi assim que as técnicas desenvolveram o projeto ‘Retratação – Conhecer para Refletir’. Desde então, somente após a vítima passar pelo projeto e com o respectivo relatório social é que o Ministério Público se posiciona favorável ou não pela designação da audiência prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha”, declarou a promotora.
E exatamente por atuar nessa área, Maria José Alves orienta as vítimas a fazerem a denúncia contra o agressor. “É fundamental quebrar o silêncio. Ele é o maior aliado do agressor, do homem autor de violência doméstica. O ‘Ligue 180’ é um canal de denúncia oficial e está à disposição das mulheres 24 horas”, enfatizou Maria José Alves.
A Promotoria de Combate e Prevenção à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher também é um mecanismo de ajuda. Ela funciona junto ao Juizado que tem a mesma competência e está localizada na Praça Sinimbu, nº 119, no Centro de Maceió.
Agosto Lilás
A campanha Agosto Lilás do Ministério Público vai reunir uma série de atividades e será compartilhada com o público por meio de diversas plataformas digitais e pelas redes sociais da instituição: Facebook.com/mpalagoas, Twitter: @mpeal, Instagram: mpealagoas e YouTube: MPdeAlagoas. Comerciais de TV e rádio foram produzidos, com o apoio da Preview Digital, para chamar atenção da sociedade para o tema. Em ambos, três mulheres contam suas histórias de violência doméstica e falam do trauma causado pelas agressões dos seus ex-companheiros. A quarta personagem é a advogada Júlia Mendes, irmã da professora Joana Mendes, assassinada em outubro passado pelo ex-companheiro.
As histórias dessas mulheres também serão contadas nas redes sociais do MPE/AL. “São históricos fortes e que merecem a nossa reflexão. Nosso objetivo é que outras vítimas que passam por drama semelhante tenham a mesma coragem e denunciem os seus agressores. São homens que precisam ser responsabilizados pelos crimes covardes que cometeram”, afirmou a promotora de Justiça Hylza Paiva Torres, coordenadora do Núcleo de Defesa da Mulher do MPE/AL.
Os relatos que irão às redes sociais do Ministério Público vão ser divididos. A cada semana, a sociedade poderá conhecer a história de uma mulher que foi vítima de um agressor. Júlia Mendes aceitou mostrar o rosto e vai compartilhar com o público a tragédia que envolveu a sua irmã, a professora Joana Mendes. “Desde o princípio nós percebemos que aquela relação era estranha. Com poucos meses de namoro, ele tatuou o rosto da Joana no corpo. O tempo foi passando e ela não conseguia enxergar que aquele relacionamento era abusivo. Até que começaram as agressões, que, depois, passaram a acontecer na mesma casa onde estavam os filhos dela. O mais novo, filho dele também. E aí veio o crime, que foi premeditado. Ele saiu de casa uma peixeira e esfaqueou a minha irmã por 34 vezes no rosto, desfigurando-a por completo. Joana morreu em função da grande quantidade de sangue que perdeu. Nós não vamos descansar até que ele pague pelo homicídio bárbaro que cometeu”, desabafou a advogada.
Simone viveu numa relação doentia por três anos. “Ele começou com as agressões psicológicas, sempre me diminuindo, humilhando-me. Na sequência, vieram as físicas. Chegamos a nos separar, mas ele sempre pedia desculpas e prometia mudar. Eu acreditava. Só que a violência voltava a acontecer. Comecei a me drogar junto com ele para suportar aquela vida. Entre idas e vindas, eu engravidei. Num dia, depois de estar sob o efeito de drogas, ele me bateu até eu abortar. Foi horrível, uma das piores dores que senti na vida, dor física e dor na alma. A gente se separou, e voltou tempos depois, até que, numa nova briga, ele jogou um pedaço de vidro em cima de mim, o que provocou um corte profundo e 13 pontos. Depois disso, criei coragem e afastei aquele homem de mim”, relatou a psicóloga.
Com Roberta foi diferente, a relação começou com muito encantamento. “Ele era um príncipe. Todas as minhas amigas tinham inveja e diziam que queriam um homem igual ao meu. Foi tudo perfeito até o nascimento do nosso primeiro filho. Com a chegada de novas responsabilidades, as farras e noitadas foram diminuindo e ele começou a reclamar. Passou a sair muito sozinho e vivia dizendo que eu tinha mudado para pior e que ninguém mais me suportava porque eu havia me tornado uma mulher chata. Começaram as discussões e eu já não tinha mais um companheiro. Ele passou a cheirar cocaína e, num determinado dia, chegou drogado e me espancou, na frente do nosso filho. Eu saí de casa às pressas e fui denunciá-lo. Hoje ele responde pelo crime que cometeu”, contou ela.
R.R. sofreu seu primeiro trauma ainda adolescente. E foi com o primeiro namorado. “Estávamos num evento do colégio e ele me convidou para ir à casa de uns amigos. Falei que meus pais não iriam deixar, mas ele me convenceu, prometeu voltar a tempo. Paramos em frente a um motel e ele disse que queria entrar e me assegurou que não faria nada que eu não quisesse. Porém, lá dentro, não foi isso o que aconteceu. Ele tinha muito mais forças do que eu, segurou-me pelos braços e me estuprou. Pensei em gritar, entretanto, acho que seria difícil alguém me ouvir. Foi horrível. Esse fantasma me perseguiu por muito tempo, passei anos sem conseguir ter uma relação sexual normal porque, cada vez que um namorado me segurava com um pouco mais de força, eu já começava a gritar. Até no meu parto, quando um dos médicos pressionou minhas mãos, eu tive uma crise”, lembrou a advogada.
Além do comercial e dos vídeos, o Ministério Público irá às ruas. No próximo sábado (5), uma tenda será montada na Rua do Comércio e o procurador-geral de Justiça, promotores de Justiça e servidores do MPE/AL vão distribuir cartazes e panfletos e conversar com a população sobre a importância da denúncia contra os homens que praticaram as mais diferentes formas de agressão. Inclusive, a foto que está nas artes produzidas pelo Ministério Público é de uma servidora da instituição, Isadora Aguiar, que aceitou emprestar seu rostro ao material gráfico da campanha por entender que a causa merece o engamento de todos. Na ocasião, serão distribuídos laços lilases com o público.
E, ainda para as redes sociais, o MPE/AL compartilhará fotos onde promotores e procuradores de Justiça, servidores da instituição, autoridades, artistas e influenciadores digitais vão aparecer com placas trazendo mensagens que condenam todos os tipos de violência contra a mulher. “É uma honra pra mim participar desse projeto. Eu adoro fazer as pessoas sorrirem, mas, nesse caso, não há graça nenhuma. O assunto é serio e precisa ser discutido”, afirmou o humorista Ed Gama, voluntário da campanha.
Além disso, a Promotoria de Combate e Prevenção à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher vai ganhar a “Sala Lilás”, com paredes e desenhos pintados na cor alusiva à campanha. O papel de parede de todos os computadores do Ministério Público também estão no clima da campanha e com mensagem que faz o mesmo alerta sobre esses tipos de agressão.
A campanha “Agosto Lilás” conta o apoio do projeto Direitos Humanos em Pauta, uma importante ferramenta do Ministério Público contra violação de qualquer tipo de direito, inclusive, aqueles assegurados às mulheres.
Agosto foi escolhido para discutir o tema porque é o mesmo mês da sanção da Lei Maria da Penha. Já a cor lilás é a cor adotada pelo feminismo no mundo.
Lei Maria da Penha
No dia 7 deste mês a Lei Maria da Penha estará completando 11 anos. Criada para proteger a mulher em situação de violência, a norma trouxe ao Brasil mudanças significativas, tendo acabado com sentenças alternativas com doação de cestas básicas e aplicação de pena só de multa, permitido prisões preventivas e estabelecido medidas protetivas de urgência, que vão desde a remoção do agressor do domicílio à proibição de sua aproximação da mulher agredida.
E o nome da lei é uma homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica por mais de 23 anos. Por duas vezes, o marido tentou assassiná-la. Na primeira tentativa, ele atirou contra a esposa, deixando-a paraplégica. Na segunda vez, a tentativa foi por eletrocussão e afogamento.
Após esse último atentado, Maria da Penha se encheu de coragem e foi à polícia denunciar o seu companheiro. Ele só foi condenado depois de 19 anos e ficou tão somente dois anos preso em regime fechado. Após o caso ganhar repercussão, o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional e o Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher se juntaram a Maria da Penha e uma denúncia foi formalizada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Isso resultou numa punição ao Brasil, que foi condenado por não dispor de mecanismos suficientes e eficientes para coibir a prática de violência doméstica contra a mulher.