As mulheres brasileiras vítimas de violência doméstica passaram a contar com a proteção da Lei 11.340, chamada Lei Maria da Penha, que entra em vigor nesta sexta-feira. A lei aumenta a pena e os mecanismos de proteção às vítimas desse tipo de violência, além de determinar que os agressores sejam presos em flagrante ou tenham a prisão preventiva decretada, suprimindo as penas restritivas de direito ou multas. Na entrevista a seguir, a promotora de Justiça Stela Valéria Cavalcanti, secretária executiva do Centro de Formação e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público de Alagoas e mestre em Direito Público na área de violência doméstica, fala da importância dessa mudança na legislação.
Qual a importância de uma lei específica sobre a violência doméstica e familiar no Brasil?
Stela Cavalcanti – A nova Lei, sancionada em agosto de 2006, vem atender ao clamor contra a sensação de impunidade despertada em muitos pela aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais aos casos de violência doméstica e familiar praticados, especialmente, contra a mulher. Muito embora a iniciativa legislativa tenha sido do próprio Poder Executivo, que apresentou o PL nº. 4.559, no final de 2004, a proposta é fruto de anos de discussão entre o Governo brasileiro e organizações internacionais e também de um apelo de centenas de brasileiras vítimas de discriminação de gênero, agressões físicas, psicológicas e sexuais no âmbito familiar.
Há uma discussão quanto à constitucionalidade da Lei 11.340/06?
Stela Cavalcanti – Entendemos que apenas a mulher pode ser sujeito passivo do delito de violência doméstica no Brasil. Não vislumbro qualquer inconstitucionalidade nesta Lei. Considero-a excelente. Segue inclusive a mesma orientação de países europeus como a Espanha e Portugal. Trata não apenas da assistência à mulher vítima de agressões domésticas, mas fixa diretrizes de política pública de prevenção, com ações articuladas entre governo e organizações não-governamentais, delimitando o atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar, por entender que a lógica da hierarquia de poder em nossa sociedade não privilegia as mulheres. Busca atender aos princípios de ação afirmativa, que têm por objetivo implementar ações direcionadas a segmentos sociais historicamente discriminados.
Que formas de violência doméstica foram incluídas no conceito da nova Lei?
Stela Cavalcanti – Seguindo orientação da Convenção de Belém do Pará, o artigo 7º da lei define claramente as formas de violência contra a mulher em cada uma de suas manifestações: física, sexual, psicológica, moral e patrimonial. Esta inclusão constituiu um grande avanço para a proteção dos direitos das mulheres. Antes, só era considerada violência doméstica a lesão corporal que ocasionasse dano físico ou à saúde da mulher.
Com essa ampliação do conceito de violência doméstica, como fica a competência?
Stela Cavalcanti – Entendemos que a partir da vigência desta Lei, a competência para processar e julgar todos os delitos que se enquadrem neste conceito, como por exemplo: crimes sexuais (estupro, atentado violento ao pudor); crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação); crimes de dano e ameaça; crimes de constrangimento ilegal e cárcere privado, entre outros, será do juiz criminal para o qual o processo for distribuído ou do juiz titular do Juizado de Violência Doméstica, que deverá ser criado pelos Estados brasileiros (art. 14).
Houve alguma mudança na ação penal para os delitos de violência doméstica?
Stela Cavlacanti – Esta é uma questão polêmica que tem acirrado as discussões na área penal. Até 1995, os crimes previstos nos artigos 129, caput, e 129, §6º, do CP, eram de ação pública incondicionada. Com a entrada em vigor da Lei nº. 11.340/06, o art. 88, da Lei 9.099/95 que estabelece a necessidade de representação para os crimes de lesão corporal leve e culposa não pode mais ser aplicado para os casos de violência doméstica contra a mulher (art. 41). Contudo, existem outros crimes, a exemplo da ameaça, art. 147, parágrafo único, em que a ação é condicionada à representação. Parece irretorquível que a partir da vigência da Lei 11.340/06 retornou a ação penal a ser pública incondicionada, mesmo nos casos de lesões leves, desde que perpetradas no âmbito familiar ou doméstico contra a mulher.
Como fica o procedimento para os crimes de violência doméstica após a vigência da lei?
Stela Cavalcanti – O art. 44 da Lei modificou a pena aplicada para o delito de violência doméstica, passando para detenção, de 3(três) meses a 3 (três) anos. Acrescentando o §11 ao artigo 129 do CP. “Na hipótese do §9º. deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência”. Anote-se que agora a lesão corporal dolosa leve contra a mulher, com violência doméstica ou familiar (art. 129, §9º., CP), deixa de ser infração penal de menor potencial ofensivo. Não bastasse a vedação do art. 41, não caberá mais a transação penal, conciliação e suspensão condicional do processo (art. 76, da Lei 9.099/95).
Que formas de prisão estão previstas na Lei 11.340/06?
Stela Cavalcanti – O art. 20 possibilita a prisão preventiva do agressor, decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade policial em qualquer fase do inquérito policial ou da instrução criminal para garantir a aplicação das medidas de proteção à vítima e cria um novo requisito para a decretação da prisão preventiva, além daqueles constantes no CPP. O juiz poderá revogar a prisão preventiva do agressor se verificar a falta de motivo para que subsista, bem como de novo decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. A prisão em flagrante também é possível. Entretanto, a custódia cautelar continua sendo medida excepcional.
Qual será o papel do Ministério Público?
Stela Cavalcanti – O Ministério Público intervirá, quando não for parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violência doméstica e familiar contra a mulher. Caberá ao MP, sem prejuízo de outras atribuições: requisitar força policial e serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança, entre outros; fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar; adotar, de imediato, as medidas administrativas ou judiciais cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades constatadas e cadastrar os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
A competência para processar e julgar o delito de violência doméstica sai dos Juizados Especiais?
Stela Cavalcanti – O art. 41 diz que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº. 9.099/95”. Propõe a criação de Varas e Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (art. 14). A criação de Varas Especializadas e principalmente de Juizados de Violência Doméstica e Familiar deve ser prioridade para os Poderes constituídos do Estado que possibilitarão uma melhor resolução dos conflitos. Enquanto isso não acontecer, as Varas Criminais acumularão as competências cíveis e criminais (art. 33).
Ainda haverá possibilidade de substituição das penas privativas de liberdade?
Stela Cavalcanti – Até o momento, a doutrina vem se manifestando no sentido de que, após a entrada em vigor da “Lei Maria da Penha”, não caberá mais a substituição das penas privativas de liberdade aplicáveis à violência doméstica, por restritivas de direito, tendo em vista o que dispõe o art. 44, I, do Código Penal