“Até hoje tenho uma bala alojada em meu corpo porque o preconceito venceu a empatia. Não dá mais para tolerar, a gente só quer respeito e ser feliz”. Foi isso que Larissa Gabriela Ferreira Mendes, de 29 anos, disse ao comentar sobre a sua transexualidade. Em 2013, um homem, ao perceber que Larissa se comportava como uma mulher, desferiu três tiros contra a vítima. Eles atingiram a mão, a coxa e o glúteo da extensora de unhas. Muitas cirurgias depois e após ter enfrentando um longo processo de depressão e de isolamento social, a jovem resolveu se empoderar e lutar contra a discriminação. E, a exemplo dela, em todo o território nacional, milhares de pessoas trans também se manifestam em desfavor desse tipo de hostilidade e violência que colocam o Brasil no ranking de país que mais mata transexuais e travestis no mundo. E para fazer o enfrentamento ao crime, o Ministério Público do Estado de Alagoas lança, neste domingo (29), em alusão à Semana da Visibilidade Trans, uma campanha nas redes sociais para levar ao conhecimento público esse universo e o trabalho desenvolvido pelas 59ª e 60ª Promotorias de Justiça, órgãos de execução que atuam no enfrentamento à transfobia. Confira aqui o vídeo.
Ao contar sobre o seu processo de transição, Larissa Gabriela Ferreira Mendes revelou que ele começou há nove meses. “Consultei os médicos especialistas e comecei o tratamento da forma correta. Faço uso do hormônio estrogênio para o desenvolvimento de traços femininos e redistribuição de gordura no corpo e o bloqueador de testosterona. Deixei o cabelo crescer e estou sempre vestida como mulher, porque é assim que eu me sinto internamente. E, exatamente por eu falar e me comportar como uma pessoa do gênero feminino, o preconceito, infelizmente, ainda existe. A prova disso foi o atentado que sofri há 10 anos. Precisei mudar toda a minha vida, tive que sair das redes sociais, trocar de número de telefone e morar em outro endereço. E sabe qual foi a punição que o agressor sofreu? Nenhuma, o inquérito contra ele foi arquivado, o que me casou uma grande revolta”, disse a estudante de Biomedicina.
A intolerância também faz parte do dia a dia de Natasha Wonderfull da Silva, de 52 anos. “Antigamente as pessoas batiam muito na gente. Bastava saberem que éramos travestis, isso já era motivo para praticar a violência contra nós, e sem falar no preconceito que sofríamos dentro de casa. Eu mesma, por exemplo, apanhei muito do meu pai porque ele não me aceitava. Com o tempo, fomos impondo respeito e exigindo que ações sociais fossem criadas para nos proteger e garantir direitos. A luta segue sendo gigantesca, porém, reconhecemos que já houve avanços, a exemplo do nome civil e da criminalização da LGBTIfobia”, afirmou a técnica de enfermagem, presidente da Associação Cultural das Travestis de Alagoas (AccTrans) e membro da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Benan Liel de Morais Silva, 30 anos, também está na fase de transição. Há pouco mais de uma semana, ele se submeteu a uma mastectomia masculinizadadora, cirurgia que faz a retirada das mamas. “Dentro da minha casa, eu encontrei apoio no meu pai e resistência na minha mãe. Não tem sido fácil, mas, é por meio do diálogo que eu tento fazer com que eles compreendam que eu, na minha essência, sou um homem. Quando criança, nunca gostei de vestido, de lacinhos no cabelo e nem de brincar de boneca. Fazer esse procedimento cirúrgico foi um sonho realizado porque eu usava faixa o tempo todo para comprimir os seios, o que me causava um desconforto terrível. Então, acho que, à medida que o tempo passa, eles vão me entendendo melhor. A mesma coisa acontece com as pessoas de fora, eu sei que tudo é um processo”, declarou o arquiteto.
Saúde, educação e mercado de trabalho
Benan começou a transicionar em 2019 e, como tem uma doença óssea que compromete a sua saúde, ele buscou o apoio médico necessário para não se fragilizar ainda mais. “Faço tratamento no Espaço Trans do Hospital Universitário, onde tenho acompanhamento de um endocrinologista e da equipe multidisciplinar psicossocial”, revelou ele.
Porém, as saúdes pública e privada ainda não são uma realidade para todas as pessoas trans e travestis. O Isaac Victor de Oliveira Santos, homem trans, de 19 anos, mas que não passou pela cirurgia de resignação sexual (mudança de sexo), explicou que continua enfrentando uma série de dificuldades quando precisa de atendimento. “Apesar do meu gênero ser masculino, o meu corpo é de mulher, então, quando vou fazer alguns exames, nem a equipe médica e nem o software dos consultórios estão preparados para lidar com isso. Tem gente que me pergunta: como vou submeter um homem a uma citologia? Como vou preencher a ficha de uma mulher, colocando o nome de um homem? Essas pessoas precisam ser capacitadas e, as empresas desenvolvedoras de sistema, têm que se atualizar e entender que o transexual também é paciente igual a qualquer outro”, cobrou.
Sobre educação e trabalho, Fabíola Ferreira da Silva, mulher travesti de 51 anos, ressaltou que o sistema de ensino e o mercado precisam se preparar para receber os transexuais. “As escolas devem nos chamar pelo nome social e não mais pelo nome morto, têm que desenvolver atividades de conscientização com os alunos e nos tratar com o respeito que merecemos, permitindo que tenhamos os mesmos espaços que os demais estudantes. E, para além disso, as pessoas trans e travestis precisam estudar porque, na maioria das vezes, esse é o único caminho para chegarmos a um patamar de vida mais confortável. Já a respeito do mercado de trabalho, as empresas e órgãos públicos devem ter a compreensão que somos iguais a quaisquer outros cidadãos e que ninguém tem que sentir vergonha da gente. Muitas vezes, quando conseguimos um emprego, escondem-nos em trabalhos internos, não permitem que fiquemos no front, na porta de entrada, num cargo de protagonismo. Isso precisa mudar”, pontuou ela.
Transexual
O transexual é a pessoa que não se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu, ou seja, é alguém que não se sente ligado ao gênero que recebeu em seu nascimento. “Em outras palavras, o transexual é aquele indivíduo que não está confortável com esse seu sexo biológico”, afirmou Natasha Wonderfull da Silva, de 52 anos.
Ela conta que, desde a infância, já se entendia como mulher. “Foi um processo natural, fui crescendo e me identificando, cada vez mais, com o gênero feminino. E, desde adolescente, ainda lá na década de 80, eu já me comportava como mulher, e tem sido assim desde então”, contou. Dentro da transsexualidade, há a mulher transgênero, que é uma pessoa que nasceu com o sexo biológico masculino (como homem), mas se autoidentifica como uma mulher, o homem transgênero, que nasceu biologicamente mulher, porém se identifica e se sente um homem, e o transgênero não binário, que não possui identidade de gênero nem com homem e nem com mulher. Isso significa dizer que a pessoa não binária não se sente, obrigatoriamente, como homem ou mulher, podendo assumir um gênero neutro, ou seja, ela pode transitar entre os gêneros ou mesmo mesclá-los.
Transfobia
Segundo a Associação Nacional de Travestis e transexuais (Antra), da qual Natasha faz parte, as pessoas que não conseguem se identificar como cisgênero ou heterossexual, ao longo da história, são alvos de “violência simbólica, psicológica, sexual, institucional e física, dentre outras, marcadas pelo cissexismo e heterosexismo, que são práticas políticas e sociais que subalternizam e hierarquizam pessoas”.
Para a Antra, a LGBTIfobia é o termo utilizado para compreender as violências cometidas contra a população LGBTI+ e se apresenta como uma série de atitudes ou sentimentos negativos em relação às pessoas LGBTI+, motivadas pela orientação sexual e/ou sua identidade de gênero. “Normalmente é motivada por desconhecimento, alienação, valores morais baseados em argumentos do senso comum, com cunho religioso, pela invisibilidade, ignorância e preconceito”, diz um trecho da cartilha “O que faz em caso de violência “LGBTfóbica”, produzida pela Associação.
O MPAL no combate à transfobia
O Ministério Público do Estado de Alagoas possui dois promotores de Justiça, Lucas Saschsida e Dalva Tenório, das 59ª e 60ª Promotorias de Justiça, que atuam no combate aos crimes contra populações vulneráveis, o que incluiu os delitos LGBTIfóbicos. “Esse tipo de crime está equiparado, por lei, ao de racismo, e é imprescritível e inafiançável. Isso significa dizer que não existe um prazo determinado para que o agressor seja processado, podendo ocorrer a qualquer tempo. Portanto, basta que a vítima registre o boletim de ocorrência na delegacia ou procure o Ministério Público para formalizar a denúncia. Em caso de ser o MPAL o órgão provocado, nós instauramos um procedimento para apurar o fato e, em ele se comprovando, a gente ajuíza a ação penal, que buscará a responsabilidade criminal do acusado”, explicou Dalva Tenório, da 60ª PJ.
E o Ministério Público de Alagoas tem histórico na luta contra a transfobia. O promotor de Justiça Lucas Saschsida lembrou que diversos casos já passaram pela sua promotoria de Justiça e garantiu que todos foram levados à Justiça. Segundo ele, “o gênero, a orientação sexual, são formas, irrenunciáveis de expressão do direito da personalidade. Devem refletir física, moral, formal e psicologicamente a identidade da pessoa, que é, por assim ser, livre para desenvolvê-la conforme a expressão de seu ser. Em outras palavras, a dignidade humana hoje nos impõe reconhecer o indivíduo, também, como um fim em si mesmo (e não só um instrumento público/social). É a visão do indivíduo como detentor de um valor intrínseco próprio, único. O Ministério Público cumprirá, sempre, seu papel na defesa da igualdade”, assegurou.
Quem tiver interesse em formalizar qualquer queixa por transfobia pode procurar a Polícia Civil e/ou Ministério Público. No MPAL, o contato pode ser feito de forma presencial na Av. Juca Sampaio, n° 3362, Barro Duro (em Maceió), ou, de maneira virtual, pelo e-mail ouvidoria@mpal.mp.br ou pelo site mpal.mp.br/ouvidoria. Mais informações podem ser obtidas por meio do telefone 82 2122-5227.
Brasil é o pais que mata travestis e transexuais
Dados da ONG Transgender Europe (TGEU) mostraram, num estudo divulgado ano passado, que o Brasil é o pais que mata travestis e transexuais, permanecendo nesse pódio desastroso pelo 13º ano consecutivo. A pesquisa apontou que em 2021, o país registrou ao menos 140 assassinatos de pessoas trans. Dentre elas, 135 eram travestis e mulheres transexuais, enquanto as outras cinco eram homens trans e pessoas transmasculinas.
O levantamento, que é realizado desde 2008, concluiu também que o país tem registrado uma média de homicídios de 123,8 assassinatos/ano, levando-se em consideração os 13 últimos anos. Porém, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, que também monitora esses números, avalia que os dados são bem maiores, uma vez que, em muitos casos, no momento da investigação policial, ignora-se a identidade de gênero da pessoa assassinada.
Para a TGEU, os principais motivos que levam o país a liderar essa triste estatística é a falta de dados e/ou subnotificações governamentais, a ausência de ações de enfrentamento da violência contra pessoas LGBTQIA+ e a queda na idade da pessoa trans.
Pelos dados, São Paulo foi o estado que mais assassinou pessoas trans em 2021, tendo registrado 25 assassinatos. Em seguida, veio a Bahia, com 13 mortes. O Rio de Janeiro e o Ceará ocuparam a 3ª e 4ª posições, contabilizando 12 e 11 homicídios. Alagoas também aparece nas estatísticas, ao lado de Amapá, Paraíba, Piauí e o Distrito Federal, com 2 casos cada um. Os únicos estados onde não foram computadas vítimas fatais de transfobia são Roraima e Tocantins.