Todo ano é assim: as religiões de matriz africana sobem à Serra da Barriga para, durante uma série de cerimônias, cultuarem seus ancestrais que, ainda no século XVI, fundaram o maior centro de resistência à escravidão que se chamou Quilombo dos Palmares. Liderados por Zumbi e Dandara, que eram casados, mais de 20 mil negros, que fugiram de engenhos de Alagoas e Pernambuco, ali viveram e transformaram aquele solo sagrado no maior quilombo da América Latina. E nesse 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra, o Ministério Público do Estado de Alagoas visitou aquele território sinônimo de obstinação e perseverança para acompanhar as atividades promovidas de combate ao preconceito racial e em defesa da liberdade do povo preto.

Árvore rodeada de alimentos e oferendas

As cerimônias que relembram o massacre ocorrido no Quilombo dos Palmares têm início, todo os anos, sempre na madrugada do 20 de novembro. Por volta das 3h da manhã, os umbandistas e candomblecistas começam suas homenagens aqueles negros que lutaram e resistiram até a morte contra a escravidão. Os primeiros rituais não podem ser acompanhados pelo público, que passa a assistir as manifestações depois que parte dos ritos religiosos são realizados.

Cortejo

Finalizadas as primeiras celebrações, as religiões de matrizes africanas partem para o segundo momento do dia, que começa com um cortejo ao longo de todo o terreno do antigo Quilombo. Entre novos rituais, cânticos, batuques, danças, lágrimas, sorriso e discursos, uma coletividade reverencia aqueles que construíram a história de liberdade negra dentro do território nacional brasileiro. E, ao longo de mais de duas horas, ela percorre esse trajeto até chegar ao lago principal da Serra da Barriga. É lá que os religiosos fazem o ritual conhecido como lavagem, onde molham os rostos, como se estivessem lavando e tirando de suas peles o sangue derramado no dia da morte de Zumbi dos Palmares. 

Oferenda simbolizando homenagem aos escravos mortos

Na sequência, vem o momento das oferendas, onde flores são colocadas dentro das águas em homenagem aos negros assassinados pela expedição do bandeirante Domingos Jorge Velho, que foi contratado pelos senhores de engenho da época para destruir Palmares. Como uma das recompensas, o algoz negociou o direito de escolher com quais negros queria ficar, tão logo terminasse o massacre, ocorrido em 1694.

“Este é um dia de marca a resistência do povo negro e que cultua a ancestralidade que tanto batalhou para que hoje nós pudéssemos estar aqui, andando livremente e manifestando o nosso credo. Professar a fé sem medos e amarras é libertador, e é justamente porque temos que agradecer aqueles que lutaram no passado, que viemos ao Quilombo, e estamos representados por 27 casas de axé. Colocamos nos pés das árvores as oferendas e obrigações, deixando várias comidas brancas, como fava, arroz, feijão e mingau, que representam a força da terra. Por fim, cobrimos tudo com a pipoca do orixá Obaluaê, que é um alimento com capacidade de purificar o corpo e eliminar todo tipo de energia negativa”, explicou Pai Célio Rodrigues, babalorixá do Axé Pratagy.

“E para honrar ainda mais a memória dessas mulheres e homens negros é que jogamos água no rosto como uma simbologia para lavar todo o sangue jorrado neste solo. Nada, absolutamente nada, começa neste 20 de Novembro antes de cultuarmos os nossos ancestrais”, acrescentou o sacerdote.

Aos 93 anos, Mãe Mirian Souza, a ialorixá mais velha de Alagoas, participou das cerimônias desde às 3h da manhã. “Eu faço questão de vir, nem me preocupo em estar o dia inteiro em pé. O sentimento de orgulho por ser preta, candomblecista e a vontade de prestar minhas homenagens, ao lado de todos aqueles que respeitam a história do povo negro, fala mais alto que qualquer questão de saúde. Esse é um compromisso de alma”, disse ela, ao comandar o ritual da lavagem.

Mãe Miria cultua, aos 93 anos, seus ancestrais que lutaram pelo fim da escravidão

MIR e Fundação Palmares voltam a participar das celebrações

Depois de quatro anos sem receber visitas do Governo Federal, agora em 2023 a realidade mudou na Serra da Barriga. O Ministério da Igualdade Racial (MIR) e a Fundação Palmares se fizeram presentes às comemorações. “O dia 20 de Novembro é uma data fundamental para que a gente possa refletir sobre as desigualdades raciais, refletir sobre o combate ao racismo e refletir sobre políticas de ações afirmativas que possam, de alguma maneira, promover o bem-estar da população negra e, em promovendo o bem-estar da população negra, promover o bem-estar da população brasileira em geral. Uma palavra-chave para o Ministério da Igualdade Racial hoje é reparação. E quando a gente fala de reparação, nós estamos falando sobre uma reparação atual, porque a população negra brasileira tem relação com desigualdades raciais não só em função do processo de escravidão que ocorreu, mas, sobretudo, em função do racismo que ainda existe hoje e que é o motor dessas desigualdades”, declarou Arthur Sinimbu, chefe da Assessoria de Participação Social e Diversidade do MIR, que representou a ministra Anielle Franco durante as celebrações do Dia da Consciência Negra.

João Jorge Rodrigues, presidente da Fundação Palmares desde abril de 2023, também veio a Alagoas para celebrar este momento: “O herói nacional de todos os brasileiros é Zumbi dos Palmares. Ele renasce do ostracismo, da invisibilidade, e vem para formar um lugar que hoje recebe o seu nome. Alagoas representa, nesta data, o Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, todas as cidades do país que, juntas, comemoram a imortalidade de Zumbi. Retomar este espaço, pisar aqui, caminhar, subir a serra com toda essa gente que atendeu o chamado, é fundamental, além de emocionante. Mas, é óbvio que a gente precisa de muito mais brasileiros vindo ao Quilombo”, reforçou ele.

Patrimônio da Humanidade

Serra da Barriga durante celebração ao Dia da Consciência Negra

João Jorge também lembrou que a Fundação voltou a ter o compromisso institucional com a promoção da diversidade e da inclusão racial no Brasil ao destacar a importância da união entre diferentes grupos, o que permite que a comunidade preta se sinta inserida, e não mais alvo de constantes discriminações. “O Parque Memorial Quilombo dos Palmares é um dos espaços que fomenta essa batalha incansável por igualdade de direitos exatamente por ser um símbolo essencial da resistência negra no Brasil.  Ele nos ajuda na preservação da memória e da história da população afrodescendente no país. E é exatamente por reconhecer o quanto ele é importante que a Fundação Cultural Palmares está tentando transformar a Serra da Barriga em Patrimônio da Humanidade pela Unesco”, explicou.

Segundo o presidente, entre os anos de 2024 e 2026, a Fundação vai mobilizar os poderes públicos municipal, estadual e federal para que, juntos, eles façam uma série de investimentos, de maneira que o Quilombo dos Palmares possa ser maior e melhor estruturado para receber não somente o movimento negro, como também turistas o ano inteiro. “Quando tivermos o parque dotado da infraestrutura necessária, vamos poder pleitear o título. Já discutimos sobre o assunto com a Unesco, ou seja, essa já é uma pauta concreta que está sendo debatida junto as Nações Unidas”, detalhou João Jorge Rodrigues.

E enquanto visitava e participava das celebrações em homenagem ao Dia da Consciência Negra, o presidente da Fundação Palmares reservou um tempo para conversar com as novas gerações. Ele falou sobre Zumbi dos Palmares para alunos de escolas públicas do município de União dos Palmares, onde está localizado o Quilombo: “É essencial que essas crianças cresçam conhecendo melhor a história do Brasil. Para além disso, elas moram num lugar que respira resistência e têm que entender quem foram os homens e mulheres ativistas que dedicaram suas vidas à causa da negritude no Brasil. E Zumbi, claro, foi um desses maiores nomes”, acrescentou ele.

João Jorge em conversa com alunos de escolas públicas

A partir de 1986 a Serra da Barriga se tornou um bem tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – autarquia federal do governo brasileiro vinculada ao Ministério da Cultura. Ela também é considerada monumento nacional desde 1988 e Patrimônio do Mercosul desde 2017. Considerado solo sagrado que possui grande representatividade para o povo negro, o Quilombo dos Palmares foi o maior foco de resistência escrava do Brasil.

O fim da escravidão e a Lei Antirracismo 

Estimativas oficiais falam em mais de cinco milhões de pessoas escravizadas no Brasil em mais de três séculos. Primeiro, foram os índios que aqui já moravam e, na sequência, negros trazidos do continente africano, que desembarcavam no litoral após viajarem por dias em porões de navios europeus. Muitos morriam antes de chegar, tamanha era a condição sub-humana da viagem. Esse cenário só começou a mudar há 136 anos, em 13 de maio de 1888 quando, oficialmente, o Brasil decretou o fim da escravidão a partir da assinatura da Lei Áurea. 

No entanto, a data estabelecida no calendário nacional não é celebrada pelo movimento negro como contam os livros de História. Segundo Arízia Barros, coordenadora do Instituto Raízes de Áfricas, entidade que atua em defesa do povo preto em Alagoas, o motivo dessa não celebração se dá em razão do preconceito racial ainda ser uma realidade que faz parte da herança cultural no país. “A escravidão no Brasil não foi uma coisa pensada para acontecer. Na verdade, ela foi uma imposição da Inglaterra que exigiu um basta do opressor, afinal, fomos o último país do mundo a libertar homens e mulheres pretos. Se o 20 de Novembro é importante? De certa forma, sim, porque foi a data que marcou a ruptura de um sistema que nos permitiu começar a galgar outros espaços. Porém, ela é um fantasma que ainda nos aterroriza e não nos permite tantas comemorações. Simbolicamente falando, são os abolicionistas da atualidade que seguem lutando para combater esse racismo que ainda permeia todas as relações sociais. São eles que batalham para que o povo preto ocupe espaços de poder, e isso só acontece porque vivemos numa democracia. Do contrário, a gente iria continuar sendo enxergado como uma raça tão somente subalterna e que não merecia qualquer tipo de ascensão”, argumentou ela. 

Arísia Barros, do Instituto Raízes de Áfricas. (Foto: Dicom/MPAL)

“Repito: homens e mulheres pretos foram libertados entre aspas. Em sua maioria, eles continuam nas periferias e sendo espancados pelas polícias ou perseguidos nos supermercados. Por isso é tão necessário o movimento negro promover releituras sobre esse processo escravagista, fazer pressão e buscar políticas públicas”, completou Arísia Barros. 

O racismo no Brasil é crime previsto na Lei nº 7.716/89. A norma jurídica pune, entre dois e cinco anos de prisão e mais pagamento de multa, todo tipo de discriminação ou preconceito, seja de origem, raça, sexo, cor ou idade. Dentre outras coisas, ela estabelece como ilicitude “impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos” e “negar ou obstar emprego em empresa privada”. Igualmente é considerado racismo o ato de você incitar alguém a praticar um ato discriminatório. 

E, mais recentemente, desde 12 de janeiro de 2023, a partir da sanção da Lei nº 14.532, a prática de injúria racial foi equiparada ao crime de racismo. Antes, ela até existia no Código Penal, porém, tinha penas mais brandas. Com essa alteração legislativa, na prática, a injúria também passou a estar associada ao ato discriminatório de raça, cor ou origem que tem como objetivo maior, partindo de uma ofensa, impor humilhação contra qualquer cidadão. Tal alteração foi ao encontro de decisões recentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

As duas principais mudanças que chegaram com a Lei nº 14.532/23 são o impedimento do agressor de responder ao processo em liberdade após o pagamento de fiança e o fato do crime não poder ser mais prescrito. Ou seja, independente da data em que ele foi praticado, o investigado será alvo de inquérito policial e denúncia por parte do Ministério Público.

O papel do MPAL

Promotor Lucas Sachsida, que atua no combate ao racismo. (Foto: Dicom/MPAL)

O Ministério Público tem o papel constitucional de atuar na garantia de direitos sociais e no combate ao crime. Como titular da ação penal, ele tem a obrigação de processar aqueles que praticam quaisquer ilicitudes, dentre elas, o racismo e todas as formas de discriminações. E tem mais: cabe ao órgão ministerial trabalhar na interlocução e fomento à políticas públicas em defesa da população negra, criando diálogos entre promotores de Justiça, instituições públicas e privadas e sociedade civil organizada.

E quando o assunto for concentrado na esfera penal, somente na capital, o MP alagoano tem duas promotorias de Justiça, 59ª e 60ª, ambas órgãos de execução que exercem suas atribuições no enfrentamento aos crimes praticados contra pessoas vulneráveis, como é o caso da comunidade negra. Também é possível acionar o Grupo de Apoio às Vítimas de Crime, o GavCrime, na busca por reparação.

“O MPAL se une a todas essas homenagens e reconhece a importância da luta iniciada ainda na época do Brasil colonial, ao tempo que segue reafirmando o seu compromisso com a promoção da igualdade racial e o combate à discriminação em todas as suas esferas. Somos um povo só, e todos os direitos são iguais para brancos, negros, pardos”, defendeu o promotor Lucas Sachsida, titular da 59ª Promotoria de Justiça.

Em Maceió, o cidadão pode denunciar o crime de racismo ao Ministério Público pelo telefone 82 2122-5227. Já no interior, basta entrar em contato com as promotorias de cada cidade, cujos telefones podem ser encontrados no link https://www.mpal.mp.br/?page_id=2816. Se preferir, também é possível registrar a queixa pela Ouvidoria do MPAL enviando uma representação por meio do site www.mpal.mp.br/ouvidoria, do e-mail ouvidoria@mpal.mp.br ou pelo aplicativo Ouvidoria MPAL, disponível para smartphones com sistemas Android e IOS. Basta preencher o formulário e colocar o maior número de detalhes sobre o caso, com informações de contato para que o promotor que receber a demanda possa contactar o denunciante para instaurar o devido procedimento legal. Há, ainda, o e-mail protocolo.administrativo@mpal.mp.br. Os interessados podem, no corpo da mensagem, solicitar agendamento para um atendimento presencial.

Confira o vídeo produzido na Serra da Barriga durante as celebrações do Dia da Consciência Negra: 

Reportagem, texto e narração de vídeo: Janaina Ribeiro

Fotos: Anderson Macena e Thiago Ferreira